Calma, não foi daqueles escancarados e absurdos que saem nos jornais, mas daqueles sutis… aquela coisa que quase ninguém nota. Exceto quem o sofre.
Ontem foi um dia especial, daqueles em que acontecem várias coisas legais. Sabe? A entrega de um projeto importante, a assinatura de outro suuuuuuper relevante, me tornei embaixadora de uma marca que acredito, acompanho e admiro… A vida acontecendo. Pra mim, e torço para que pra você também.
Nestes momentos, a gente só quer comemorar. É a desculpa perfeita para sair da dieta com o famoso "eu mereço, trabalho tanto". E eu concordo, a gente merece MUUUITO.
Não sei você, mas a minha melhor forma de comemorar é comendo algo que eu gosto. A comida tem um lugar afetivo na minha mente. Então, ontem eu queria especificamente comer hambúrguer e tomar milkshake. Lembrei de um lugar super legal que conhecemos através do delivery e lá fomos nós, eu e Igor, um casal normal querendo comemorar uma conquista extraordinária para a gente.
Chegando lá, o local estava completamente vazio, afinal, terça-feira, né? Haha.
Nos sentamos em frente a uma cozinha de vidro, daquelas bem grandes e bonitas, onde conseguimos ver quase dez pessoas trabalhando lá dentro. Nós os vimos, mas, para eles, a gente parecia invisível. Esperamos sentados por aproximadamente sete minutos. Sem atendimento, sem recepção, sem um olá. Apenas a espera e um cardápio jogado na mesa.
''Eles devem estar ocupados. Tá tudo bem" (eu dizia mentalmente para mim mesma).
Passado esse tempo, um atendente sai da cozinha, se aproxima da mesa e diz: Boa noite, qual seu pedido? — Eu: Boa noite, eu gostaria deste aqui, por favor.
— Igor: Boa noite, quero o da casa e um suco, por favor
— Atendente: Ok, vamos preparar.
Alguns minutos depois, chega o hambúrguer, muito bom por sinal, mas sem molhos, guardanapos ou qualquer outro acréscimo. Apenas a bandeja e o hambúrguer. Levantamos a mão diversas vezes na intenção de chamá-los e, novamente, somos lembrados de que estamos invisíveis. Deixamos pra lá, comemos um pouco e pedimos a conta.
Tentei comer até o final, mas não consegui. Entre lágrimas e molhos, o lanche ficou pela metade. Tinha um gosto amargo, um sabor que não veio da cozinha, mas da experiência de mais uma vez ser lembrada do meu lugar.
Antes da conta chegar, entra mais uma pessoa. Diferente.
Diferente porque ele é branco. E isso não é uma crítica, mas percebi que essa característica deu a ele o poder da visibilidade. Algo que, como casal de pessoas negras, não tivemos.
Assim que ele adentrou o estabelecimento, rapidamente se via o movimento na cozinha, o atendente se dirigindo à mesa, aquela preocupação com todos os detalhes e, em menos de 20 segundos…
— Boa noite, senhor, é sua primeira vez na casa?
— Sim.
— Seja muito bem-vindo, é um prazer te atender. Este é o nosso cardápio e gostaria de te explicar sobre cada um dos nossos hambúrgueres. A carne é feita com blend X…
(Aqui você pode imaginar que a conversa foi longe, entre explicações, detalhes e tantas outras coisas. Da mesa ao lado, tivemos a oportunidade de conhecer um cardápio e um atendente completamente diferente do que nos foi apresentado anteriormente.)
E o mesmo comportamento de extrema simpatia e atenção se repetiu ao longo de mais um atendimento que correu enquanto pacientemente esperávamos a conta que solicitamos minutos atrás.
"Ah, Andreza, mas ele não teve a intenção. Talvez ele nem tenha percebido."
Acredito. Ou quero acreditar que realmente não teve. E imagino que ele não tenha percebido.
Mas eu percebi. Meu parceiro percebeu… Porque só dói em quem passa.
O racismo estrutural não é apenas quando alguém escancaradamente te impede de entrar em algum espaço. Ele se manifesta em atitudes “sutis”, em vivências cotidianas que me lembram, todos os dias, que até o banal pode se tornar uma batalha. Algo deveria ser algo simples virou mais um episódio frustrante, cruel e exaustivo.
E o que mais me surpreendeu foi o quanto isso mexeu comigo. Não era a primeira vez, nem seria a última.
Eu já vivi isso tantas vezes… Então por que dessa vez doeu tanto? Talvez porque, naquele dia, eu só queria comemorar. Mais do que isso, eu só queria comer. Só queria um hambúrguer e um milkshake, sem precisar carregar esse peso.
Essas atitudes não são como um golpe que mata de uma vez, mas como uma experiência torturante que machuca, faz sangrar e nunca tem fim.
Tudo isso, vivenciei após a entrega de uma palestra sobre racismo estrutural. Porque é importante lembrar que a minha notoriedade, competência ou ascensão social não me isentam do racismo. Ser sócia de duas empresas, embaixadora de várias marcas, premiada nacional e internacionalmente… nada disso me isenta do racismo.
"Poxa, mas eu te acho tão forte!" E eu sou. Mas isso não me isenta do racismo. E nem isenta qualquer pessoa negra que esteja ao seu redor.
A única coisa que pode nos isentar do racismo é o conhecimento. Ok, talvez não isentar, mas pode transformar.
Pode fazer com que aquele atendente, que talvez não tenha percebido, passe a perceber. Pode fazer com que o cliente branco, que foi tão bem tratado, enxergue a diferença e questione. Pode fazer com que menos pessoas tenham que se sentir invisíveis no futuro.
Porque o racismo estrutural não está só em quem pratica, mas também em quem escolhe não ver. E enquanto houver quem escolha não ver, existirão histórias como essa sendo contadas.
E eu? Eu sigo falando, a gente segue tentando. E sinto muito. Porque, no fim, eu sinto o tempo todo.

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